O princípio da força obrigatória do contrato e a ação revisional
Uma das questões mais frequentes levantadas pelos clientes que nos procuram para a propositura da ação revisional é: “como posso contestar um contrato que assinei e, por consequência, concordei com suas cláusulas?” Para que possamos responder a questão é necessário discorrer sobre o princípio da força obrigatória do contrato e sua relativização.
O princípio da força obrigatória dos contratos, proveniente da expressão latina pacta sunt servanda, significa que o contrato é a lei entre as partes, ou seja, ele tem força obrigatória e não pode ser modificado. Na concepção clássica, o princípio da força obrigatória dos contratos era absoluto, o que significa que as partes deveriam cumprir o contrato exatamente da forma como foi pactuado, independente da continuidade das condições das partes à época do comprometimento.
Essa informação ganha relevância na medida em que atualmente a maioria dos contratos de consumo é de “adesão”, onde a instituição financeira possui um contrato padronizado, com cláusulas previamente definidas, cabendo ao consumidor apenas aceitá-lo em bloco, sem discussão, seja em face da sua vulnerabilidade técnica seja em face da falta de alternativa.
No entanto, após a Constituição Federal de 1988 (CF/88), houve uma significativa relativização na obrigatoriedade e imutabilidade das cláusulas contratuais, que devem ser interpretadas segundo os princípios da dignidade da pessoa humana, da função social do contrato e da boa fé objetiva, sobre os quais discorreremos a seguir.
Dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana é considerada um princípio superior a qualquer outro previsto na CF/88. Não se trata de um direito, porque direitos são renunciáveis, enquanto que a dignidade não. Então, se o referido princípio não é passível de renúncia, ele não pode faltar em qualquer circunstância do Direito.
Para Edilsom Pereira de Farias, na obra “Colisão de Direitos na relação entre honra, intimidade, vida privada e imagem versus liberdade de expressão e informação", a dignidade da pessoa humana consiste num princípio que é “fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais”:
"(...) imbricado ao valor da pessoa humana está o princípio ético-jurídico da dignidade da pessoa humana. Ou seja, o valor da pessoa humana é traduzido juridicamente pelo eminente princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Este significa a objetivação em forma de proposição jurídica do valor da dignidade do homem. (...) O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre um relevante papel na arquitetura constitucional: ele constitui a fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais. Aquele princípio é o valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. Dessarte, o extenso rol de direitos e garantias fundamentais consagrados pelo título II da Constituição Federal de 1988 traduz uma especificação e densificação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III). Em suma, os direitos fundamentais são uma primeira e importante concretização desse último princípio, quer se trate dos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5°), dos direitos sociais (art. 6° a 11) ou dos direitos políticos (art. 14 a 17)". (Edilsom Pereira de Farias. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000.
Função Social do Contrato
De acordo com a nova forma de interpretar o Direito Privado em decorrência da evolução das garantias pessoais, a perspectiva funcional passou gradualmente a ganhar maior destaque no cenário hermenêutico, se sobrepor à análise puramente conceitual e estrutural dos institutos jurídicos. A questão central na análise dos contratos na atualidade é se sua finalidade está sendo cumprida, pois "na perspectiva funcional, os institutos jurídicos são sempre analisados como instrumentos para a consecução de finalidades consideradas úteis e justas." (Pablo Renteria, Considerações à cerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo, Renovar, 2006)
O antigo princípio do pacta sunt servanda, portanto, pode e deve sofrer mitigações para se adequar aos princípios constitucionais e da legislação civilista, ou seja, os contratos devem visar, fundamentalmente, uma função social e a satisfação dos interesses das partes contratantes, em cooperação.
Dessa forma, se o contrato celebrado satisfaz apenas a um lado da relação, prejudicando o outro, o pacto não cumpre sua função social. Nessa situação, deve o Judiciário promover o re-equilíbrio contratual através da revisão das cláusulas prejudiciais a uma das partes.
Note-se que, na teoria contemporânea do Direito Contratual, impõe-se uma mudança radical na interpretação das obrigações, que não podem mais ser consideradas apenas como uma garantia do credor (relação de subordinação), mas como uma relação de cooperação entre credor e devedor.
O conceito moderno do contrato vai além e interessa a toda comunidade social, não somente às partes contratantes, como antes. A idéia de função social está relacionada com o conceito de finalidade e não se pode afastar seu fundamento constitucional, principalmente em relação à dignidade da pessoa humana.
O Código Civil Brasileiro condiciona expressamente a liberdade contratual à função social. O professor Flávio Tartuce ensina que o principal enfoque é justamente equilibrar as relações jurídicas, sem preponderância de uma parte sobre a outra, resguardados os interesses do grupo social também nas relações de direito privado. (Função Social dos Contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002 . São Paulo: Editora Método, 2007).
A Boa-fé objetiva
A boa-fé objetiva é um princípio geral que estabelece um roteiro a ser seguido nos negócios jurídicos, inclui normas de condutas que devem ser observadas pelas partes ou, por outro lado, restringe o exercício de direitos subjetivos ou, ainda, como um modo hermenêutico das declarações de vontades das partes de um negocio, em cada caso concreto.
Somente com o Código do Consumidor, em 1990, a boa fé objetiva foi consagrada no ordenamento jurídico pátrio. Garantida constitucionalmente, essa modalidade de boa-fé começou a ser utilizada para interpretar contratos, garantindo integração de obrigações pactuadas. Dessa forma, mostra-se absolutamente fundamental para que as partes de um negócio jurídico possam agir com lealdade perante a outra até o cumprimento das obrigações pactuadas.
Segundo Maria Teresa Negreiros, na obra Teoria do Contrato, "o princípio da boa-fé impõe um padrão de conduta a ambos os contratantes, no sentido da recíproca cooperação, com consideração dos interesses um do outro, em vista de se alcançar o efeito prático que justifica a existência jurídica do contrato celebrado". (NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato . Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 12305)
O artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor, considera nulas as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que sejam incompatíveis com a boa-fé. Já o artigo 422, do Código Civill, estabelece que os contraentes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé. Dessa forma, a boa-fé objetiva exige um dever de conduta, ética, lealdade e colaboração na execução do contrato.
Não se pode dizer, portanto, que está presente a boa-fé objetiva em um contrato de adesão, o qual permite uma série de vantagens e lucros exorbitantes a um dos contratantes, resultantes, por exemplo, de estipulação de taxas de juros muito superiores ao razoável de uma economia estabilizada e com baixos índices de inflação.
A onerosidade excessiva como fator determinante para a revisão contratual
Com a edição do Código de Defesa do Consumidor, adotou-se uma postura mais objetiva na análise das cláusulas contratuais e na revisão contratual por circunstâncias supervenientes. Atualmente, o único requisito necessário para que seja autorizada a revisão contratual é a onerosidade excessiva.
Diante disso, a onerosidade excessiva não precisa ser superveniente, podendo ser originária, ou seja, desde a formação do contrato, pois a condição de vulnerabilidade do consumidor não lhe permite a compreensão da vantagem manifestamente excessiva em favor do fornecedor do crédito.
Dessa forma, atualmente o cerne do princípio da força obrigatória dos contratos é a igualdade substancial nas relações contratuais e, por conseqüência, o equilíbrio entre as posições econômicas dos contratantes. Ao contrário do equilíbrio meramente formal, busca-se agora que as prestações em favor de um contratante não lhe acarretem um lucro exagerado em detrimento do empobrecimento do outro contratante. Em face das diferenças no poder negocial entre os contratantes, a disciplina contratual moderna cria mecanismos de proteção da parte menos favorecida, como é o caso da revisão contratual e consequente redução das prestações.